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ESPECIAL: Uma jornada em busca de compreender Florence Welch.


Florence em seu último trabalho, o curta The Odyssey

Imagem: Reprodução Google

Florence Welch é uma das cantoras e compositoras contemporâneas mais aclamadas do Reino Unido, por um conjunto de fatores que fascinam grande parte de seus ouvintes; a mistura dramática de caos, tragédia e beleza, a beleza distorcida, ainda que harmônica, parece lhe cair como uma luva de inverno. Em parceria com sua Máquina, ela compõe o time da Florence and The Machine, com a qual lançou três álbuns de excelente recepção crítica e comercial, para uma obra indie-rock - Lungs (2009), Ceremonials (2011) e How Big How Blue How Beautiful (2015). Aos 31 anos, a britânica, cujo corpo se doa como tela a mais de dez tatuagens, reune um grande volume de personalidades artísticas em sua biblioteca de referências, sobre as quais se discorrerá (talvez, pretensiosamente) a seguir. Afinal de contas, quem é esse ícone indie-rock?

Algumas das tattoos de Florence Welch.

Imagens: Reprodução Google

Tentar compreender o indivíduo por trás da artista Florence Welch pode ser uma longa jornada, embora prazerosa. Na infância, seu pai a colocava para dormir ao som de The Smiths, uma banda dos anos 80 com letras perturbadas, porque a meninha tinha dificuldades para dormir e ele considerava a banda "particularmente soporífera": “Se um ônibus de dois andares colidisse contra nós, morrer ao seu lado… Que jeito divino de morrer! E se um caminhão de dez toneladas matasse a nós dois, morrer ao seu lado… Bom, o prazer e o privilégio seriam meus”, canta Morrissey, em “There Is a Light That Never Goes Out”, enquanto pede para que alguém não se sinta mal por vê-lo morrer, em “Asleep”: “Eu quero que você saiba, do fundo do meu coração, eu ficarei tão feliz em partir”. No velório da avó, ainda duranta a infância de Welch, o pai propôs que ela cantasse. E alguém duvida que ela tenha cantado?

De fato, é possível traçar um paralelo entre sua construção familiar e o trabalho atual da artista. A concepção inflamada de morte, da maneira como a cultura ocidental a encara e ensina, um extremo tabu, parece não passar tão rente à ideia pessoal de Welch; ela fala de caixões, cadáveres e demônios da mesma maneira objetiva e destemida que se refere ao amor, a santos e à felicidade, evocando grandes canções com sua doce e contrastante voz.

Florence Welch e sua mãe, Evelyn.

Imagem: Reprodução Google

Florence parece estar cercada por mulheres resistentes. A mãe da diva indie, Evelyn, por exemplo, é professora de História da Arte Renascentista. Em entrevista à Macleans, em 2015, Welch disse que passava muito tempo em espaços dedicados a exposições de arte, quando criança. Ela descreve como chocante a ocasião em que viu St. Agatha com seus seios cortados. “Foi particularmente chocante e criou uma marca. Quando você tem uma história de mulheres por trás de você, você está constantemente sendo moldada por algo poderoso. […] Através do conselho de outras mulheres, senti como se eu ganhasse mais força”.

Florence tira a camisa, no Festival Coachella, em 2015

Imagem: Reprodução Google

Welch abraça sem qualquer intimidação o título de feminista e, ainda à Macleans, quando questionada sobre suas letras sexuais não explícitas, ela explica que nunca se censurou: “Nunca houve uma letra onde pensei que era demais. Recentemente, tirei meu top [no Coachella]. Eu mostrei pra minha mãe e foi tipo 'Olha, isso significa que eu sou forte e possuo sentimentos!’”. Seu segundo álbum junto à Máquina, Ceremonials, teve como abelha-rainha a padroeira da França, Joana d'Arc, camponesa, analfabeta e chefe militar da Guerra dos Cem Anos. Em 1431, D'Arc foi executada na fogueira pelos borguinhões, contra os quais lutou, em um auto de fé, uma penitência aplicada publicamente, para humilhar hereges e apóstatas, bem como cristãos-novos que se recusavam a cumprir a nova fé imposta. Uma chaga da Inquisição.

A ruiva cresceu lendo muita mitologia grega e sempre teve interesse por histórias de fantasia e fantasmas, outra característica importante para se caracterizar a estrela. “Passei muito tempo em um mundo imaginário, jogando com meus irmãos e irmãs, sobre ser bruxas e feiticeiras […] A música Delilah (Dalila, em Portugês) é uma referência bíblica”, exemplifica. No clipe da música, Florence aparece cortando os cabelos de seu amado, como na história de Sansão e Dalila.

Florence para a Elle Itália

Imagem: Elle Itália/David Burton.

Sua última entrevista, concedida à revista Elle Itália, parece evidenciar uma parte de suas referências. Num único bate-papo, Florence expõe diversos nomes como influenciadores de teu estilo peculiar, a começar por Alessandro Michele, dono da marca Gucci, da qual a cantora é embaixadora. A primeira vez que Florence e Michele se cruzaram foi em Nova York, por acaso. Ela usava um colete de pompom e uma boca de sino vermelha. Ele, como um grande nome da moda, trajava o que a rockstar da FATM descreve como roupas Shakesperianas clássicas. À publicação, ela disse se definir, estéticamente, como adepta a um estilo entre romântico e boêmio, com bordados e diferentes padronagens e estampas. Compartilha de um grande amor pela beleza imperfeita, nunca muito bonita, mas misturada com elementos escuros. “E anéis. Muitos anéis!”, detalha.

Obra de Ugo Rondinone

Imagem: Reprodução Google

Seu primeiro hit, Dog Days are Over, foi inspirado – claro! – por uma obra de Ugo Rondinone, que ela via sempre que andava de bicicleta, pela Waterloo Bridge, em Londres. De William Blake, poeta e pintor inglês, é grande fã, bem como da cantora performática Kate Bush, cuja teatralidade e linguagem corporal parecem, aliás, bastante ligadas ao estilo que Florence desenvolve durante a carreira, ainda que haja particularidades em cada uma delas, exageros que podem ser descritos como um método particular de exorcizar demônios, como Welch bem faz em Shake it Out, uma absoluta explosão catártica.

Kate Bush - Wuthering Heights

Florence passeia entre artistas que imprimem com eficácia sua intensa personalidade no que produzem: Bowie, o camaleão futurista que viajou entre o fantasioso e a melancolia quase póstuma, esta em sua última dádiva, Blackstar; Nick Cave, conhecido, principalmente, pelo trabalho com a Nick Cave and The Bad Seeds e autor de grandes clássicos, como Red Right Hand, que chegou a ser, inclusive, trilha sonora para uma das mais famosas franquias de terror dos anos 90, “Scream”; e Stevie Nicks, integrante do Fleetwood Mac, dona de um marcante timbre grave, e cuja banda é, ainda hoje, aclamada por críticos, em álbuns como Rumours, de 1977, que atingiu a incrível marca de 99 pontos no Metacritic.

Ademais, pode-se mencionar desde Neil Young, astro canadense que se tornou uma lenda do rock americano, influenciado por estilos folk e country-rock, considerado um dos vinte melhores guitarristas do mundo, pela Rolling Stones, e dono de uma estrela na calçada da fama do Canadá; Keith Richards, integrante da The Rolling Stones e eleito o quarto melhor guitarrista na lista supracitada; até Alex Turner, vocalista, compositor e guitarrista da Arctic Monkeys, banda inglesa de indie-rock.

Otis Redding é um caso à parte: um cantor norte-americano de soul, com voz marcante, estilo apaixonado, conhecido por canções que ficaram para a história da música, como “My Girl”, na qual declama: “as abelhas me invejam, eu tenho a canção mais doce que posso cantar”. Redding morreu num desastre aéreo, no ano de 1967, fazendo grande sucesso póstumo com a música "(Sittin' On) the Dock of the Bay". Welch demonstra afinidade com o trabalho do astro, numa homenagem em seu show intimista para a MTV, com um cover de “Try a Little Tenderness”, além da releitura de Stand by Me, em 2016, uma original de Ben E. King, regravada por Redding, em 1964.

A banda The National é um fascínio para a inglesa. Trouble Will Find Me é, definitivamente, um de seus álbuns. É embalado por uma sonoridade quase melancólica, ainda que ensaie lá seus momentos de excitação, com canções como This Is The Last Time, Humiliation e Demons, e letras do tipo “Eu choro embaixo d'água. Eu não posso descer ainda mais. Todos os meus amigos se afogando podem ver que, agora, não há como fugir disso […] Eu fico para baixo, com os meus demônios […] Passando urubus no céu. Jacarés nos esgotos. Eu nem mesmo me pergunto por que, escondo-me embaixo das vistas, abraço eles durante toda a noite […] Sob o céu claro e fulminante está uma humilhação”. Uma melancolia vigorosa, se é que essas palavras se harmonizam.

Casa de Florence Welch

Imagem: Reprodução Google.

Apesar de não ser afeita à tecnologia, a musa inglesa costuma atualizar, com certo comedimento, suas redes sociais, em especial o Instagram. Acessá-lo é deparar-se com uma série de manuscritos que ela mantém num caderno, em sua casa, repleto de ideias. A casa da inglesa, aliás, onde foi gravado o vídeo para a música Ship To Wreck, é uma interessante fração de sua personalidade. Ela já se descreveu como uma decoradora inerente. “Para mim, morar numa casa ou estar num cômodo é como cuidar de um organismo vivo”. E o organismo cuidado por Florence parece reverberar grande parte da beleza de quem o cuida; ao lado de um belo jardim, infestada por pilhas caóticas de livros, roupas ao maior estilo Florence, cartões postais, letras de músicas e obras de arte, como as da pintora mexicana Frida Kahlo, pela qual Welch se diz fascinada.

Lembra das mulheres fortes? Frida, um dos nomes constantes na vida de Welch, era uma mulher a frente de seu tempo. Segundo historiadores, entre eles a biógrafa Hayden Herrera, a artista transformava suas dores em arte. Quando criança, Frida contraiu poliomielite, o que a deixou com uma lesão no pé esquerdo, fazendo-a ganhar o apelido 'Frida perna de pau'. Em 1925, ela sofreu um acidente que resultou em múltiplas fraturas. Frida, então, precisou fazer 35 cirurgias e ficou presa à cama, com problemas na coluna, período no qual começou a pintar e retratar suas angústias e frustrações em suas criações.

Frida Kahlo

Imagens: Reprodução Google.

No vestuário, Frida era repleta de cores e rica em elementos florais. Fora diversas vezes fotografada com as mãos repletas de grandes anéis de pedras coloridas, além de colares de ossos e madeira. Alguma lembrança?

Florence e integrantes de seu clube do livro

Imagem: Reprodução Google

Em seu clube do livro, “Between Two Books” – nome criado por um grupo de fãs e aprovado pela artista, uma referência à canção Between Two Lungs – ela e os integrantes, apaixonados por literatura, leem o mesmo livro, por um determinado período, e desenvolvem uma discussão num grupo do Facebook. Entre os materiais lidos, estão Here I Am, de Jonathan Safran Foer e Só Garotos, de Patti Smith.

Florence para a Elle Itália

Imagem: Elle Itália/David Burton.

Também à Elle, a britânica expôs afinidade com o estilo pré-rafaelita, uma irmandade que desejava valorizar as características artísticas dominantes na arte medieval, na arte gótica e no início do Renascimento, devolvendo à arte a sua pureza e honestidade e renegando a frivolidade da arte acadêmica. Eles se preocupavam com o materialismo da sociedade e representavam em suas obras temas inspirados em Dante Alighieri, imagens religiosas e lendas antigas, como a do Rei Artur.

Obra A estrela de Belém, de Edward Burne-Jones (1890).

Imagem: Reprodução Google.

"Ofélia" John Everett Millais (1851-2)

Imagem: Reprodução Google.

Essa mistura de influenciadores parece tecer uma ideia vasta de miss Welch, que não se mostra capaz de ser delineada. Afinal de contas, ela se reinventa a cada novo trabalho, moldando-se a um novo tempo de sua própria existência e exteriorizando evidências de novos aprendizados, ou se doa de maneira parcimoniosa, uma fração a cada nova canção e álbum, às migalhas, como quem alimenta pássaros livres num parque, sob o sol de verão, reforçando-os a regressar e se alimentar, mais e mais, com o que lança por entre seus dedos?

A cada álbum, ela parece acrescentar substância nova à sua musicalidade, dando ao público algo mais para se pensar acerca de seu arranjo humano; suas letras tragicamente poéticas quase gotejam lágrimas e abrem feridas em nossos ouvidos, enquanto afagam nosso corpo por inteiro.

Entender suas tempestades e santos não é tarefa para qualquer desavisado, quando a própria diz que suas composições podem ser mais sábias que ela mesma. Parece haver uma estranha dissociação entre a criatura e o criador, quando se trata de grandes artistas. Não é raro que eles mesmos tenham dificuldades para se guiar em meio às suas próprias anotações; com Florence, mais do que se distinguir, a criatura parece se comunicar com a criadora, através de sua "linguagem própria, em línguas e sons quietos, rezas e proclamações”, uma vez que lhe sugere soluções despercebidas, até então. São as linhas de seu coração, como ela já bem mencionou.

Florence Welch no jardim de sua casa

Imagem: Reprodução Google.

Compreender Florence Welch é, talvez, lição pra uma vida. Muito além de uma artista, ela evidencia buscar, como todo o grande indivíduo, constantes revoluções em seu próprio ser, processo concebido por grandes direções artísticas, que parecem lhe ter moldado em aberto, até aqui, como um grande e disposto receptáculo.

Florence Welch, em The Odyssey

Imagem: Reprodução Google.

Seu último trabalho, o curta The Odyssey, incremento ao álbum How Big How Blue How Beautiful, ilustra uma jornada pós-guerra, na qual a artista parece querer se desvencilhar de sua destruição pessoal, advinda de um relacionamento arruinado, e compreender todos os entraves que a fizeram estar ali. Numa cena de abertura, Florence indaga a seu parceiro: "Então, você acha que pessoas que passam juntas por uma tragédia, como uma tempestade ou algo catastrófico, ficam mais ligadas?” O amante parece sinalizar positivamente.

Para parte do público, ainda que a resposta seja um retumbante não, abrir-se como hospedeiro às catástrofes de Welch, buscar seu calcanhar de Aquiles em peças tão autênticas, cativantes e viscerais, dar as mãos a ela e, invariavelmente, atravessar, tem sido um deleite. Aqui está, portanto, miss Welch; um indivíduo bordado em intenso capricho caótico, que molda sua redenção diária, como um bicho buscando compreender a floresta que lhe contorna, lhe encurrala, noite após noite. Compreendê-la, mas jamais limitar-se a ela.

Talvez esteja aí uma força primordial que move um ser humano: a busca pelo fazer sentido, a qual possibilita colher ramas e ramas de beleza pela vida, construindo-a. Esse parece ser um processo que, tanto para o grande público, quanto para artistas como Welch, talvez nunca (e felizmente) alcance um ápice final, porque estaria aí a completa irrelevância da vida; entender-se sem mais perspectivas.

Bem-vindos à jornada!

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