"Fiz as pazes com a Florence"
Entrevista dada à Mario Bonaldi, da revista Rolling Stone Itália. O texto inglês está no site do fã-clube Florence + The Machine Italian Army e pode ser lido aqui. A tradução exclusiva para o português é do Site Florence Brasil. Todos os direitos reservados.
Foto de Tom Beard
Quando estou prestes a entrar no elevador que vai me levar ao quarto de Florence Welch, eu esbarro em Sarah Jessica Parker: coisas que acontecem nos hotéis chiques da região central de Londres. […] Alguns andares acima, ainda feliz e abalado, eu abro uma porta e lá está Florence, olhando para o longe com uma luz por trás, muito alta, usando um vestido longo e vintage, feito do material com o qual roupas vintage são criadas. Ela se vira e o cabelo acobreado cria uma pequena roda em volta do rosto. Como entrada dramática, está ótimo. Imagino que ela faça isso com todos os jornalistas, um roteiro aparentemente natural, mas já bastante testado.
Florence Welch nasceu em 1986: praticamente todos com quem falei sobre ela, antes e depois desta entrevista, disseram que a achavam bem mais velha. Eu também, admito. Pessoalmente, seja com a voz, a risada ou por observar a elasticidade da pele dela, eu imediatamente a vejo como a jovem que é.
No final de junho a cantora ingelsa vai lançar o quarto álbum, High as Hope. Antecipado por alguns singles bem fortes, especialmente Hunger, parece um retorno à simplicidade do álbum de estreia, Lungs (2009). A Florence de 2018 parece uma artista dolorosamente serena. “Serena? Ninguém jamais me disse isso! Legal!”, responde ela com uma risada, destacando apenas a parte que a interessa da minha descrição. O entusiasmo com que Florence respondeu ao longo da entrevista deveria me obrigar a usar sempre o ponto de exclamação, mas vou poupar vocês disso.
“Acho que fui capaz de me entender melhor neste álbum do que no último (How Big, How Blue, How Beautiful, 2015), que foi uma espécie de grito longo, enquanto o High as Hope foi composto em condições muito melhores. Fico feliz por isso estar evidente”. Todo o álbum parece concebido do ponto de vista de uma pessoa adulta, que olha para trás e observa a versão mais jovem e imatura de si com uma espécie de alívio (visto que ela mudou) e também carinho. Florence explode em outra risada: “A minha versão mais jovem era definitivamente mais burra! É um álbum muito ponderado. Estar imersa no caos, como eu estava há pouco tempo, não dá uma chance de pensar no passado e entender por que você agiu de uma determinada forma… É uma sensação feliz e melancólica ao mesmo tempo. Quando você não está ocupada criando drama na sua vida, você se permite ponderar”.
O tema do High as Hope pode ser resumido no verso “Húbris (a arrogância do homem na cultura helênica) é uma merda” de 100 Years, uma das últimas faixas do álbum. “Húbris é uma merda!” repete Florence, divertida, como se eu tivesse escrito isso. “Poderia muito bem ter sido o título do álbum. Ela veio de um poema que eu estava escrevendo. Pensei em tudo o que está acontecendo e veio espontaneamente: Húbris é uma merda! É como se o mundo fosse uma grande tragédia grega, na qual as estruturas de poder entram em colapso. Eu pensei: que porra é essa que está acontecendo?”
Certamente esta nova Florence + The Machine parece complicar menos a vida, até do ponto de vista musical: as novas músicas são agradavelmente sóbrias. “Gosto de pensar nesse álbum como um Lungs mais velho, com dez anos de experiência.”
Foto de Tom Beard
“O Ceremonials nasceu porque eu amei Cosmic Love e disse: ‘Vamos fazer um álbum inteiro assim!’ Eu construí uma catedral enorme, com sons muito intensos … É difícil fazer algo mais pomposo que o Ceremonials! A única possibilidade era tentar trazer a minha música de volta à Terra. Marcus Dravs, meu produtor, foi ótimo para me ajudar a desacelerar. Minha tendência é sempre adicionar. Eu começo dizendo: ‘Vamos fazer algo bem minimalista’, depois falo: ‘Bom, um coral de crianças poderia soar bem aqui’. No How Big, How Blue, How Beautiful, que já foi mais controlado, volta e meia aparecia um naipe de metais! Eu sempre voltava a ser eu mesma: sou atraída por sentimentos fortes. Hoje eu acho que aperfeiçoei o meu trabalho e não sinto mais a necessidade de acrescentar”.
O terceiro álbum foi cheio de dor, o que a deixou se sentindo vulnerável. “Mas quando comecei a trabalhar no High as Hope, porém,eu consegui deixar as expectativas alheias de lado e voltar à diversão de fazer música apenas teclando uma nota em um piano, batendo uma baqueta na parede … É a mesma energia com a qual gravei meu primeiro álbum. O segundo e o terceiro foram divertidos, mas eu estava sob muita pressão. Eu amo igualmente os dois, mas foram excessivamente intensos. Se este álbum parece natural, é porque expressa a essência do que eu sou, como talvez só tenha acontecido no Lungs”.
Uma das músicas mais explosivas do álbum é Patricia. De quem ela fala? “Estou surpresa com sucesso dela. Obviamente foi inspirada na Patti Smith, que sempre foi uma fonte de inspiração para mim. Uma “estrela polar” em termos criativos, como eu digo na letra. Sou apaixonada pela escrita dela, pela forma como ela consegue transformar a vida cotidiana em algo mágico. Eu poderia passar horas lendo sobre ela comendo torradas e bebendo café. E pensar que nunca a conheci. Já fui a alguns shows dela, mas sou tímida demais para me apresentar”.
A impressão é que esta nova Florence se sente menos pressionada a dar as pessoas – e às gravadoras – sucessos como Dog Days Are Over e You’ve Got The Love, que viraram hinos: “O mais engraçado é que eu não crio músicas desse jeito. Dog Days nasceu como um pequeno experimento, a segunda música que compus na vida. Uma escala maior simples tocada no piano, mas com muita força!”. E com uma letra meio absurda, para ser sincera. “Eu disse: ‘Vou compor uma música’ e juntei as notas musicais com os rascunhos do meu diário. Ela significa muito para mim, mesmo que o motivo não estivesse muito claro. Eu estava livre. Talvez seja por isso que tanta gente gosta dessa música. Eu não me preocupo em criar sucessos; o primeiro lugar da parada pop nunca foi a minha ambição”.
Eu li em algumas entrevistas que Florence é tímida de um jeito quase patológico, mas pessoa que está na minha frente parece confiante, exceto por um tom excessivamente agudo na voz. Eu sugiro que talvez hoje ela consiga aproveitar o melhor da fama e do sucesso. “Às vezes quando estou sozinha eu penso: ‘Não acredito que realmente tive sucesso como musicista’. Minha ambição quando criança era entrar para o elenco de Starlight Express, sabe? O musical de Andrew Lloyd Webber”. Nunca ouvi falar. “Eu queria ser um dos trens que cantavam. Infelizmente, foi cancelado. Chegou a ser encenado na Itália?”. Eu acho que não. “É um musical glam rock, com patinadores interpretando trens que cantam”. A essa altura eu tenho quase certeza que nunca foi encenado no país. “Pensando bem, é uma loucura que alguém tenha decidido produzir isso. Em presumo, meu sonho era participar de um musical. Mas eu era uma pessoa meio esquisita e que adorava ler. Eu conseguia cantar, mas era tímida demais. Queria que minha mãe me mandasse para uma escola de atuação, mas ela disse ‘Não vamos falar nisso. Você é péssima em matemática e gramática, precisa se concentrar é nos estudos!’”, ela ri de novo, empolgada. “Mas eu tenho que agradecer a ela porque os estudos e a universidade moldaram a minha arte muito mais do que qualquer escola de atuação poderia ter feito. Hoje eu sou grata por ser capaz de fazer o que eu faço sem concessões. Ao mesmo tempo, porém, eu sou uma pessoa ansiosa e tímida e quero que minha vida seja privada. Não quero atrair atenção o tempo todo”.
Por isso, Florence faz questão de ser discreta, o que a afasta dos fotógrafos. “Eu sempre digo à minha empresária: ‘Este nível de fama está bom, não quero mais. Confio em você! Eu não quero ser mais famosa do que isso!”. Florence literalmente cai na gargalhada, talvez ciente da estranheza do que acabou de dizer. Ela é uma estrela global, mas como em todas as afirmações desta entrevista, parece totalmente sincera. “Em cada álbum eu tenho medo de que algo seja diferente, que as condições mudem do nada. Preciso manter uma aparência de normalidade. Eu não conseguiria viver de outra forma”.
Confesso que não entendo qual é a diferença entre a mulher Florence e a artista Florence. Uma pergunta velha, sem dúvida, mas existem artistas que caíram em um abismo ou até algo pior ao questionar isso. “Para começar, eu nunca entendi se Florence + The Machine é um projeto solo ou uma banda! Fiz questão de manter esta ambiguidade porque é muito útil. Às vezes é bom ser um “nós”, é uma espécie de proteção, um local para se esconder. Ao longo do tempo a pessoa cantando no palco e eu começamos a ficar mais próximas. O Nick Cave disse algo fantástico: “Sou Nick Cave agora e não posso voltar a ser o que era antes”.
Florence explica que leu esta frase enquanto fazia o How Big, quando buscava “me despir da personagem para chegar a mim mesma”. “Fiz isso para continuar seguindo em frente: as duas personas precisam se unir em algum ponto da minha carreira. Eu tive que fazer as pazes com o fato de ser a Florence da Florence + The Machine e o jeito que isso se reflete na minha vida real. Ao mesmo tempo, eu quero que as pessoas entrem em contato com o meu lado mais vulnerável e humano. Não sou muito boa em me reinventar: eu prefiro a evolução”.
O tempo passou voando, mas ainda tenho uma pergunta: a mais difícil de todas: qual é o maior medo da Florence hoje?
Ela pensa um pouco, responde algumas vezes e depois para. “De… desmoronar. De me desfazer. Minha conexão com a realidade é tênue e tenho medo de que um dia eu me veja em um lugar de onde não consiga voltar. Tive um momento muito difícil no Natal do anho passado, uma combinação de problemas de saúde e mais... Eu me senti de um jeito realmente sombrio. É algo que venho conseguindo evitar há muito tempo cuidando de mim, meditando, mas sei que sempre pode acontecer de novo”.
A pressão de um álbum prestes a ser lançado e do começo de uma turnê promocional levou a isso. “E eu fiquei com muito medo. Sei que este lado sombrio da minha alma existe e está à espreita. Tenho medo de me forçar a ir longe demais, de me consumir. Para alguém que está sempre com a cabeça nas nuvens, sinto que há duas possibilidades: encontrar a paz ou desaparecer nelas. O mais difícil é continuar criando e me conectando com as pessoas, ficando vulnerável e mostrando isso e ao mesmo tempo afastar este perigo de afundar de vez.”