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"Não me pesar todos os dias é uma conquista maior do que ser headliner de Glastonbury", Fl


Florence divulgou em suas redes sociais que escreveu um artigo para a revista Vogue do Reino Unido. No que provavelmente é seu texto mais contundente, ela abre o jogo sobre seus conflitos internos, o transtorno alimentar, os vícios e a saúde mental. A revista não saiu no Brasil, mas a matéria original pode ser lida no site do fã-clube inglês e a nossa tradução exclusiva está logo abaixo da foto.

Lembrando que todos os direitos desta tradução estão reservados para o Site Florence Brasil. Esta tradução pode ser divulgada, desde que dando os devídos créditos ao Site Florence Brasil.

Foto promocional feita por Vincent Haycock

“Você não bate o seu coração”

Por vários anos, mesmo com a fama e a adoração trazidas pelo seu talento impressionante, Florence Welch sofreu com questões de autoestima. Aqui ela relata como finalmente declarou trégua em sua guerra interior.

Às vezes eu me lembro de algo idiota que fiz na adolescência, como tentar conseguir uma tatuagem no rosto aos 14 anos, e preciso sentar para recuperar o fôlego porque não consigo acreditar que escapei e sobrevivi a todos aqueles anos. Ou talvez eu não tenha sobrevivido? Mas pelo menos ainda estou viva.

Levei um tempo para entender meu valor. Eu fiquei sóbria aos 27 anos, alguns meses depois da minha festa de aniversário, quando minha mãe fez um discurso (na verdade um apelo) aos meus amigos para que me mantivessem viva e longe do notório “clube dos 27”. Depois que ela terminou, eu enfiei a cara no bolo e entrei embaixo do chuveiro totalmente vestida. Naquele dia, eu jamais teria acreditado que meu aniversário de trinta anos seria um evento sóbrio e calmo, com bons amigos e ótima comida que eu realmente comi e que eu teria levantado a bandeira branca na festa, agitando um dos braços. Eu me rendo, já chega. Afinal, eu vinha planejando a versão alternativa desta festa desde a adolescência: uma bacanal de uma semana de duração para marcar o fim da minha trigésima década.

Eu tendo a olhar para aquela época com um misto de nostalgia e terror. Uma parte de mim fica estupefata com aquela garota e o total desrespeito pela autopreservação, como ela conseguia se jogar no mundo de cabeça e de olhos fechados, sem qualquer preocupação com as consequências. Mas eu também quero abraçá-la e dizer: “Está tudo bem. Você está bem, pode descer agora. Você está gritando no alto dessa árvore há tempo demais.”

Embora eu admire isso de um jeito meio nauseado, boa parte da minha bravura na adolescência e início da vida adulta veio do ódio por mim mesma. Eu conseguia ir além dos limites e me arriscar porque não estava muito preocupada se voltaria viva. A inconsciência geralmente era o objetivo. Eu não sei se era devido à pressão social ou uma predisposição genética ao perfeccionismo e ansiedade (transtornos alimentares e vícios são comuns na minha família), mas em algum momento ao longo do caminho eu aprendi que estava errada e não era boa, inteligente ou magra o suficiente. Eu tinha muita raiva de mim o tempo todo. Como isso aconteceu, eu não sei. Ainda estou tentando entender o que leva jovens mulheres a entrarem em guerra consigo mesmas, mas o coro do julgamento nunca parou de cantar. E ainda canta hoje, embora não tão alto ou com tanta frequência quanto antes e quando o faz, eu tento não me automedicar com vodca pura ou deixando de comer.

Às vezes eu sinto falta da loucura da minha adolescência: invadir prédios abandonados, subir em árvores na Soho Square, passar vários dias fora de casa, colecionando roupas e hematomas pelo caminho. Eu era bem selvagem para uma pessoa que ainda morava com os pais, embora em uma casa de acadêmicos tão amorosos quanto ausentes e seis adolescentes, onde era fácil passar despercebida. Tudo era terrível e maravilhoso e todos estavam loucamente apaixonados ou com uma dor de cotovelo monumental, muitas vezes no espaço de meia hora. Eu tive umas fases profundamente questionáveis em relação às roupas, de “bibliotecária bêbada” a “bruxa morcega bêbada”, e agora tenho certeza que ficar sem franja não funciona com testa grande. Mas não me arrependo de quase nada.

Foi estranho abrir mão de tudo isso e eu fiquei de luto por um tempo. Ser musicista e beber até perder a consciência pode levar você a uma existência um tanto mimada e dificultar o crescimento. Eu sentia que a vida de farras era uma parte crucial da minha personalidade: boa em cantar, em beber e usar drogas. (Observação: se você acha que é boa em usar muitas drogas, geralmente significa que não é boa nisso e vai acabar tendo que parar em algum momento para não acontecer o pior).

Mas ainda não perdi a recém-descoberta sensação de “barato” de sair de algum lugar com todos os meus pertences e sem ser apalpada por alguém inadequado em um estacionamento. Parece um milagre passar as segundas-feiras trabalhando ou lendo em vez de maratonar Bake Off, incapaz de me mexer e alternando crises intermitentes de choro no travesseiro, esperando que isso apagasse o sofrimento.

Também existem outros milagres cotidianos. Eu não me peso há quatro anos e não faço a menor ideia de quanto estou pesando agora. Há cinco anos, eu conseguia dizer quanto eu me pesava de manhã, à noite, com roupas e sem roupas. Com e sem joias. Abrir mão disso às vezes parece uma conquista maior do que ser headliner de Glastonbury.

Desenhos feitos pela Florence que estão no artigo original. O primeiro pode ser traduzido como "Inconsciência" ou "Esquecimento", o segundo diz "Você não bate o seu coração" e o terceiro, "Vodca, purpurina, cerveja e lágrimas". Fonte: este link.

Pode parecer que estou sendo dramática (quem, eu?), mas qualquer pessoa que já viveu sob a tirania da balança vai entender o esforço necessário para confiar em seu corpo. Eu pensava que o meu relacionamento com a comida nunca seria normal; eu acreditava que ele estava destruído e sem chance de reparo, mas posso dizer honestamente que não penso nisso agora. Eu não faço dieta. E nem faço porra de “detox” nenhuma. Eu tento não pensar nos alimentos como sendo bons ou ruins. Levou muito tempo, mas a obsessão sumiu. E eu precisei fazer a pior coisa que eu poderia imaginar: começar a falar sobre ela.

Um transtorno alimentar quer você calada, envergonhada, isolada. Ele vai dizer qualquer coisa a fim de fazer você guardar tudo para si. Provavelmente está dizendo a você agora que não deveria dizer o nome dele, que ele é seu amigo. Mas o seu corpo é mais que um objeto a ser olhado. Ele trabalha com você, não contra você. Você não bate o seu coração.

Isso não significa que eu resolvi tudo. Não sou um bastião de sanidade. Se você negou nutrição a si mesma, muitas vezes pode negar nutrição emocional também. Eu tenho dificuldade para aceitar amor e também acho difícil aceitar a estabilidade. Ter uma grande capacidade para a alegria significa ter uma capacidade até maior para a melancolia.

Ainda consigo sair do palco com a multidão aplaudindo e voltar ao meu quarto para ficar sozinha, rolando a tela do telefone até encontrar algo que me deixe realmente infeliz. Fotos de paparazzi que não pegam os meus melhores ângulos são boas para isso ou erros no visual que nunca morrem. Embora eu adore as redes sociais como forma de conexão, elas também são uma ferramenta prática para cavar seu buraco da vergonha personalizado.

O comportamento autodestrutivo muda de forma o tempo todo, mas estou trabalhando nele. E quanto mais sincera eu sou, mais feliz eu fico. Não acredito mais na autodestruição como forma de ser criativa. E quanto menos preocupada eu fico com a minha aparência ou com o que fiz ontem à noite, mais energia eu tenho para dedicar ao trabalho. Eu consegui ter sucesso apesar dos meus demônios, não por causa deles.

Eu me pergunto se a versão mais jovem de mim ficaria horrorizada com as minhas noites de sexta-feira hoje em dia: comendo massa e vendo TV com uma pessoa que é boa para mim. Será que ela me acharia banal? Eu certamente já ouvi jornalistas reclamando da “falta de astros e estrelas do rock se comportando como astros e estrelas do rock,” mas o hedonismo nunca me deu a liberdade que eu desejava. E não tenho mais certeza em relação ao comportamento rock’n’roll frequentemente esperado dos artistas. Muita gente talentosa já morreu por isso e o mundo parece frágil demais para beber litros de champanhe e mostrar o dedo médio para ele.

A maioria dos amigos que bebiam comigo teve que parar. Eles vêm à tona como pedaços de madeira na água e nós ficamos juntos na margem, igualmente chocados e aliviados. Nós cozinhamos, conversamos e trabalhamos. As pessoas começaram a ter filhos e a dormir cedo. E todas as “coisas chatas de adulto” que rejeitamos na época agora parecem atos de rebeldia, de certa forma. É uma forma de rebelião continuar presente e ir contra o desejo da sociedade de que você se entorpeça e afaste o olhar, mas é preciso olhar.

Crucificar-se em nome da arte significa interromper a arte e perder outra voz. Neste momento da nossa história, nunca foi tão urgente ter o máximo possível de vozes cantando.


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